Recentemente o governo federal anunciou a recomposição do orçamento das universidades e institutos federais com a destinação de aproximadamente R$ 2,4 bilhões, com a finalidade de alavancar o ensino superior, profissional e tecnológico no Brasil. No anúncio feito pelo chefe do Poder Executivo federal, um ponto de destaque foi a necessidade de diálogo transparente entre o governo e as instâncias da sociedade para a tomada de decisões na área da educação, a fim de impulsionar o desenvolvimento social e econômico mediante a aproximação da pesquisa acadêmica com o setor produtivo do país.
Nesse contexto, ainda com o papel pouco compreendido fora do ambiente acadêmico, estão as fundações de apoio, que constituem verdadeiro player para dar concretude ao estímulo tecnológico e de inovação. O regime jurídico híbrido a que estão submetidas permite a execução de projetos entre todas as instâncias da sociedade com a articulação do público e do privado, em especial na execução de recursos financeiros advindos tanto do orçamento público quanto de pessoas físicas ou jurídicas privadas, a exemplo da previsão normativa contida no parágrafo único do artigo 2º da Lei Federal nº 13.800/19, que atribuiu às fundações de apoio a possibilidade de atuarem como organização gestora de fundos patrimoniais (endowments).
Diante da intersecção de interesses na atuação das fundações de apoio e a necessidade de maior transparência pública sobre suas atividades, parece ser imprescindível a adoção de mecanismos de integridade. A premissa do debate proposto decorre da circunstância de que, na última década, temas sobre compliance e ESG passaram a fazer parte da rotina das empresas, muitas delas efetivamente preocupadas em modificar suas atuações, para estarem em conformidade com a função social que constitucionalmente foram convocadas a exercer, o que também se observa em relação à administração pública, que tem incorporado as práticas ESG e o compliance na nova agenda da governança pública.
Fundações de Apoio e o seu Enquadramento Jurídico
No âmbito federal, as fundações de apoio possuem regulação por meio da Lei Federal nº 8.958/1994, sensivelmente alterada pela Lei Federal nº 12.863/13, que estabelece as regras atinentes às relações entre as fundações de apoio e as instituições federais de ensino superior (Ifes), as Instituições Científicas e Tecnológicas (ICTs), que compreendem em sua maior parte as universidades públicas. Cabe ressaltar que a referida lei tem aplicabilidade apenas às instituições federais, de modo que cada ente federativo tem a autonomia para regulamentar a matéria. Entretanto, a lei disciplina parâmetros de caráter geral, que serão a seguir abordados.
De acordo com a referida lei, as fundações de apoio são instituídas para a gerência, inclusive administrativa e financeira, de projetos de ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento institucional, científico e tecnológico e estímulo à inovação mediante a celebração de contratos e ou de convênios com as instituições federais de ensino superior e de ciência e tecnologia.
Esse marco legal visou conferir eficiência na alocação de recursos financeiros na pesquisa e na tecnologia, pois permitiu a captação e gestão de recursos, sem ingresso na conta única do Tesouro Nacional, dando agilidade e acesso, por exemplo, a investimentos por empresas privadas, que eventualmente optassem por aportar em determinada pesquisa em alguma instituição científica.
A lei ainda conferiu diretrizes para a estrutura administrativa e de governança das fundações de apoio. Quanto à personalidade jurídica, constituem-se como fundação, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, submetida ao velamento do Ministério Público, nos termos do Código Civil. A lei determina que a fundação de apoio especifique em seu Estatuto Social qual ou quais instituições serão por ela apoiadas. Isso desemboca no feixe de interesses propagado em uma fundação de apoio, pois ela terá intrínseca relação com a instituição apoiada, devendo ter parte de seus órgãos deliberativos formado por dirigentes indicados pela instituição apoiada, a qual, por sua vez, deve ter uma norma que discipline como será essa relação e quais os projetos serão submetidos à interveniência da fundação de apoio.
A intrínseca relação da fundação de apoio e a instituição pública apoiada gerou um grande debate jurídico a respeito de seu enquadramento enquanto entidade governamental diante do manuseio de recursos públicos. A discussão foi travada pela circunstância de que a fundação de apoio é criada por destaque patrimonial de pessoas físicas, por exemplo, professores universitários, ou pessoas jurídicas privadas e, em algumas hipóteses, pela própria instituição pública apoiada, mas não mediante lei, tampouco por ela mantida, o que, então, a torna distante da descentralização administrativa.
O entendimento que prevaleceu foi de que a fundação de apoio não integra a administração pública, mas decorre de decisões voluntárias de pessoas para a criação de um espaço integrativo com dedicação específica a conferir gestão administrativa e financeira aos projetos de desenvolvimento do ensino, pesquisa, ciência e tecnologia. Portanto, a essência de uma fundação de apoio é que ela está submetida à governança própria.
Governança, compliance e riscos
Pode-se afirmar que, ao menos, desde a década de 1970, as empresas estão preocupadas em criar regras para fiscalizar seus dirigentes. Preocupação que não surgiu em razão de grandes demandas sociais, mas sim do receio dos acionistas, que, como proprietários do patrimônio investido, desejavam que a gestão do negócio fosse feita com a maior transparência e eficiência possível. Daí surgem critérios com transparência, equidade e accountability (prestação responsável de contas) como medidas passíveis de enfrentar os problemas decorrentes de conflitos de agência.
As regras de conformidade (compliance) surgem também na década de 1970, mas em outro contexto, decorrente de escândalos de desvios de condutas, destacando-se nos EUA o denominado escândalo de Watergate, que identificou um enorme esquema de financiamento ilegal de campanha presidencial envolvendo diversas grandes empresas. Como consequência, foi criada a primeira legislação mundial voltada ao combate à corrupção empresarial, denominada Foreign Corrupt Practices Act (FCPA).
Referida lei tinha como perfil aplicar severas multas àquelas instituições que praticassem atos de corrupção. Porém, havia a possibilidade de atenuar a pena àqueles que realizassem programas de prevenção a ilícitos (programas de compliance). A partir daí, surgiu um movimento internacional de elaboração de tratados para que houvesse uma uniformidade mundial no combate à corrupção, sendo que, em razão dos compromissos internacionais firmados, o Brasil editou sua lei de combate à corrupção empresarial em 2013 (Lei 12.846/2013).
Diante desse referencial histórico, pode-se definir que a governança deve se preocupar com o constante aperfeiçoamento da estrutura organizacional. Deve também se preocupar com a constante melhoria na tomada de decisões, o que pode ser feito por meio da criação de comitês, órgãos deliberativos, órgãos fiscais capazes de estipularem processos e regras de ações conjuntas de aperfeiçoamento e antecipação de resoluções. Cabe, na governança, assumir a gestão da fiscalização interna da instituição por meio de procedimentos investigatórios. A governança se insere dentro do nível estratégico de uma instituição referente à alta administração para a regulação da tomada de decisão.
Quanto ao compliance, a preocupação volta-se à geração de valor ético, no sentido de conferir integridade às condutas para o alcance não só de uma boa governança, em nível estratégico, mas de uma boa gestão, em nível tático e operacional. O compliance visa à prevenção para se evitar ilícitos mediante a identificação de irregularidades e o respectivo saneamento, assim como o mapeamento de riscos para que, sendo eles previamente detectados, as condutas sejam praticadas em verdadeira condução ética.
Em termos práticos, valendo-se dos principais normativos do tema, a instituição deve estabelecer responsáveis (preferencialmente criando um setor específico), que fiquem incumbidos pela criação, consolidação e aperfeiçoamento de regras (códigos, políticas, procedimentos, instruções de trabalho, manuais), capazes de padronizar condutas de interesse institucional e em conformidade com os propósitos fixados nos atos constitutivos.
O setor de compliance deve também se responsabilizar pelo mapeamento e gestão de riscos, segundo critérios técnicos, que podem ser extraídos de standards de auditoria, criando internamente a cultura de identificação e mitigação de riscos. Tanto as políticas como a gestão de riscos devem ser objeto de treinamento com todos aqueles que estão vinculados à instituição, gerando um conhecimento mais uniforme em todos os setores e permitindo que as pessoas sejam as primeiras linhas de defesa da legalidade e ética dentro da instituição.
Governança, compliance, riscos e as fundações de apoio
Em relação às fundações de apoio, a cultura de governança e compliance precisa permear toda a estrutura administrativa como uma prática inserida na rotina dos processos, oferecendo segurança na operacionalização dos objetos dos contratos e convênios gerenciados.
A adoção de práticas de governança auxilia na redução de conflitos de interesses, em especial ao nortear a compatibilidade de ações, formato de gestão ou alocação de investimentos na captação e na aplicação de recursos financeiros. Há estudos empíricos que demonstram que o modelo de governança adotado por uma fundação de apoio impacta no seu desempenho econômico-financeiro, sendo o compliance um dos métodos para o alcance da boa governança.
Entretanto, a realidade aponta que as fundações de apoio parecem ainda não terem assimilado integralmente a adoção de tais práticas em sua gestão. Em levantamento realizado por meio de acesso às entidades fundacionais filiadas ao Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), identificou-se que das 98 afiliadas apenas 18 possuem um sistema de governança e de compliance instituído:
Os fatores levados em consideração consistiram na existência dos atos normativos de conformidade, tais como o código de ética, políticas de gestão, em conjunto com a existência de canal de denúncia, aliados de forma integrativa com a estrutura organizacional em órgãos específicos responsáveis pelo programa de integridade, tais como comitês e comissões. Isso porque o compliance precisa estar inserido dentro da tomada de decisões para a concretização da integridade. Não se mostra suficiente possuir apenas um Código de Ética e/ou canal de denúncia, de maneira isolada, como se verificou em mais de 40% das fundações de apoio examinadas, o que se denota um dado preocupante.
O levantamento ainda considerou informações disponibilizadas nos endereços eletrônicos das fundações de apoio analisadas, o que também indica a existência de compliance, pois é o principal meio de transparência, de modo que a informação deve estar nítida e de fácil acesso pelos cidadãos e pela sociedade. Não se mostra suficiente, de igual modo, que a instituição instaure comissão em sua rotina quando se depare com uma denúncia, o que só é de ciência daqueles gestores. É preciso a normatização de como essa comissão é instaurada, quem a comporá, o procedimento de apuração etc., sendo a política divulgada, pois é nesse sentido que a conformidade atingirá a mudança da cultura organizacional, evitando desvios de conduta.
O compliance não pode ser considerado como mais uma regra a ser cumprida, mas como um mecanismo para as fundações de apoio atuarem preventiva e eticamente com maior segurança jurídica para se evitar entraves gerenciais e substituição da administração fundacional pelos órgãos externos de controle. Ainda mais considerando a governança própria a que as fundações de apoio estão submetidas, que exige, para a devida observância, normatização interna e constitutiva mediante condutas pautadas em políticas e procedimentos, por sua vez, contornados por matriz de riscos e por detecção e saneamento de irregularidades para a alocação eficiente de recursos e avanço da inovação e tecnologia.
Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2023, 8h00